domingo, fevereiro 13, 2011

Antecipação

Tinha de ser aquele copo.
Partiu o único copo numa casa cheia de copos.
Aquele copo tinha sido.
Tinha vivido.
E tinha sido trazido de Erasmus.
Do bar onde um gajo ia sempre, às Quintas-feiras.
Num daqueles sítios onde não há sinal no telemóvel mas um gajo nem se preocupa porque sabe que toda a gente virá lá parar, sem combinar.
Erasmus feito em 2004/2005.
Há 17 anos.
E até hoje tinha resistido a mudanças, lavagens à mão, lavagens na máquina, malabarismos arriscados.
Representava um ano lectivo, um ano civil, um ano de transição, um ano de posição.
De várias transições e situações.
E tinha de partir logo aquele.
Não podia ter sido aquele oferecido com o menu grande na McDonald's.
Nem aquele comprado no IKEA, igual aos outros 23.
Nem aquele da Sagres, furtado duma tasca qualquer.
Não, tinha de ser aquele.
Um ano desfeito em pedaços, no chão da cozinha.
Milhões de memórias envidraçadas e agora estilhaçadas.
Quantas vezes lhe disse para não pegar nas coisas de vidro com as mãos molhadas?
Tarde demais.
Os olhos dele, à altura um nadinha acima dos nossos joelhos, lágrimas quase a escapar pela pálpebra inferior, uma barragem a transbordar.
Boca descaída, a consciência da asneira, culpa própria.
A verdade é que o avisei mil vezes.
Mil e uma vezes, a contar com aquela dez segundos antes do copo lhe escapar das mãos e aterrar na parte de cima do tecto do vizinho de baixo.
Um filho deve ser isto.
Um sabor sempre doce, mesmo na situação mais amarga.

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