segunda-feira, março 20, 2006

factor medo

- olá, então, está pronto?
- estou com medo - respondi.
entrámos na sala iluminada.
daquelas iluminações tipo hospital, cheia de recantos escuros, mas superfícies que ferem os olhos, de tão brancas.
sentei-me na cadeira, já não sentia aquele material há cerca de dois anos.
"então, não vem cá há muito tempo, assim vai custar mais..."
"pois, a ti deve custar-te muito, deve...", pensei com os meus botões.
hhmm...tinha uma camisola vestida, não havia botões.
pensei com as minhas costuras, então.
ela disse-me para me inclinar para trás, que íamos começar.
fechei os olhos, apertei as mãos contra os braços da cadeira.
"au!" gritou ela.
um dos braços não era da cadeira, era dela.
"desculpe" retorqui prontamente, pensando se aquele engano não teria sido o carimbo no meu passaporte para o inferno.
começou a tortura.
pensava incessantemente para com as minhas costuras e braguilha que havia torturas bem piores que aquela, que no iraque e outros cenários de guerra, muita gente sofreria muito mais que aquilo que eu estava a sofrer.
mas alguém há muito tempo inventou as proporções.
e, proporcionalmente mais baixa, a minha dor não deixava de ser sempre uma dor.
sentia o sabor do meu sangue na boca que ela lapidava, via-lhe de perto as pingas de suor que lhe escorriam da testa de encontro aos meus olhos.
"está a tentar cegar-me" pensei de novo, desta feita para com os boxers.
se o esforço a fazia suar, a consequência de tal era a força empregue na minha cavidade de "cumer e buber".
senti-me a desmaiar, não sei quanto tempo estive inconsciente.
quando acordei ela tinha uma mola no nariz, o que me levou a deduzir que durante o sono devo ter solto um gás ou outro, como consequência do terror em que me encontrava.
finalmente acabou...
estalando os dedos e tirando as luvas de plástico utilizadas para outros fins como exames rectais, ela despediu-se de mim com um suave "até breve".
eu saí, pensando que realmente sempre era melhor ir ao dentista fazer uma higiene de rotina do que ir não-sei-onde fazer um exame rectal.

2 comentários:

Nandinho Jr. disse...

a arte de contar histórias..
divinal.. mais uma de 5 estrelas!!
Sr. (grande) autor, não tem ideias de escrever um livro? Eu compro!

Anónimo disse...

só de ler, consegui ouvir o som estridente da broca contra os dentes e o som sempre agradável do aspirador bucal.... até estremeço de horror... é, sem dúvida, a forma mais gravosa da tortura urbana dos tempos modernos. Urbana e instalada, ainda não foi classificada como crime no Código Penal, não sei porquê.... talvez porque os nossos legisladores vão ouco ao dentista ??

 
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